A mãe é que sabe!
(ou o pai).
I.
Esta expressão sempre me irritou um bocado. Estou habituado a lê-la como uma espécie de legitimação da ignorância. Coitados, os pais não podem saber tudo. Mas fazem o seu melhor e é o que basta. Mesmo que isso signifique não vacinar os filhos? Abusar deles emocionalmente para que depois transtornem a vida de pessoas normais que só querem trabalhar descansadas sem ter de lidar com psicopatas? Ou o que quer que seja que vocês considerem mau e eu não.
Um miúdo leva um chapadão no meio da rua, mas o pai é que sabe! Tudo bem. Fora com os livros e manuais sobre parentalidade! Teorias para quê – a mãe é que sabe. O meu espírito do contra encanita-se sempre que ouve isto. “Não, eles não sabem – eles são estúpidos!”, grita o meu espírito.
Mas depois alguém me pergunta: “então mas quem é que sabe? és tu?”.
Pensando melhor, vou contar-vos uma história.
II.
Em Dezembro do ano passado tive uma semana de trabalho daquelas. Reuniões, eventos, acontecimentos sócio-profissionais, networking, apresentações; tudo o que deixa um introvertido de rastos, no espaço de cinco dias. Para tornar a coisa mais intensa, e porque é sempre assim nestas coisas, o Mexicano e a Xica não estavam muito bem. Ele, com uma tosse chata que durava há uns dias, cheio de ranho e espirros; e ela, igual, mas com menos tosse.
No último dia de trabalho, a meio da última reunião, a Ana liga-me do hospital. O Mexicano tinha piorado, estava abatido, cheio de febre e foram para as urgências. A Xica, a quem entretanto tinha sido diagnosticada uma bronquiolite, ficou com a Avó. A Ana tinha de ir ter com a bebé, e pedia-me para ficar com ele no hospital. Cheguei lá, atravessei a sala de espera apinhada com olhares febris e ares esverdeados, e encontrei-os na sala dos aerossóis, o Mexicano prostrado sobre o ombro da Ana.
A médica, que já o tinha visto, disse que não parecia nada de grave, e que o melhor era ir para casa fazer benuron e xaropes. Óptimo, obrigado doutora, vamos para casa, cuidado para não pisar nenhum destes ranhosos, e que ninguém nos tussa para cima.
Mas a Ana recusou ir embora. Disse que sabia que o Mexicano não estava bem, e pediu para que lhe fizessem mais exames. Entretanto foi ter com a Xica, e fiquei com ele à espera de sermos chamados para o raio-X.
Na sala dos aerossóis (não sei se é o nome correcto, mas havia aerossóis, e era uma sala) ficámos ali entre os casos graves de internamento e os menos graves de sala de espera. Dentro do ambiente, era o melhor sítio para se estar. Mas a calma enferma que entretanto se tinha instalado naquela sala, foi interrompida por um pai e uma filha um bocadinho mais velha que o resto dos miúdos.
Devia ter uns 7, 8 anos, e tossia muito. Começou a fazer os aerossóis e pareceu melhorar. Entretanto, o pai começou a bombardeá-la com uma bateria de questões relacionadas com a escola, “quanto tens prova de português?”, cof cof, “já receberam a de matemática?”, cof cof, “que nota teve a tua prima?”, cof cof. A tosse acompanhava a intensidade do interrogatório numa cadência de pergunta-tosse-repetiçãodaperguntanumvolumemaisalto-tossemaisforte. Culpei-o logo pela tosse (claramente psicossomática) da miúda, e fiquei muito contente por saber que nunca ia fazer aquilo a um filho meu. Depois senti-me mal com a minha arrogância, se calhar era daquelas miúdas estranhas que adoravam a escola e o pai só a estava a tentar acalmar.
Entretanto fizemos o Raio-X. Pneumonia. Hoje em dia uma pneumonia já não tem o peso que tinha no século passado, mas ainda é uma palavra que impõe respeito. Lembro-me de ser criança e aprender (ou imaginar) que se houvesse uma hierarquia de doenças relacionadas com espirros, a pneumonia qualificar-se-ia bem alto.
Constipação forte: “tem de ficar dois dias em casa”.
Gripe: “tem de ficar uma semana em casa”.
Pneumonia: pediatra abre uma garrafa de whisky, suspira e diz “vamos ver se o miúdo se safa.”
in Pediatria dos Anos 80, Anónimo
Para piorar, o miúdo não aguentava nada no estômago por causa da febre e tinha de levar o antibiótico por via intra-venosa. Íamos passar a noite no hospital.
O hospital não tinha quartos disponíveis, portanto ficámos a dormir nas urgências. Já não era bem o recato, relativo, da sala dos aerossóis. Era hardcore. Havia quatro camas, e senti que ter pneumonia, ali, era uma sorte. A noite não foi tão terrível como eu estava à espera, foi só francamente má. Às quatro da manhã ele lembrou-se que estava cheio de sede, dei-lhe água e vomitou tudo. Tiveram de lhe mudar a cama toda e o pijama. A médica disse-me que não lhe podia dar água, que o estômago tinha de acalmar para ir para casa fazer antibiótico. Às quatro e meia da manhã voltou a lembrar-se que estava cheio de sede e eu disse que não lhe podia dar água.
Esteve meia hora a gemer “ábuaaaa, ábuaaaa, ábuuaaaa” e eu a dizer-lhe “não pode ser, faz mal, faz dódoi” e ele continuava “ábuuaaaa, ábuuuaaaa, ábuaaaa”, ouvi uma voz do escuro a dizer “dê-lhe lá um bocadinho de água!” mas o que sabia aquela mãe?, eu tinha prometido à senhora doutora, e eu “não posso, não pode ser” e ela insistia “dê-lhe só um bocadinho” e cedi à peer pressure, molhei-lhe os lábios e ele calava-se por instantes, até perceber a trapaça e gemer por “ábuaaaaaaaaaaaaaaa” mais um bocado.
Por fim adormeceu, conseguimos dormir um hora e pouco. Entretanto, a Ana chegou. Fui à casa de banho, finalmente, mudei de roupa e comi um croissant misto daqueles que vêm duros e semi-frios das máquinas. Lembrou-me comida de avião, soube-me bem.
III.
Uma vez explicaram-me que os aviões já aterram praticamente sozinhos, mas para descolar ainda precisam de um ser humano. Tem a ver com limitações tecnológicas, a movimentação constante nas placas e pistas dos aeroportos, mas também com a necessidade de tomar decisões numa fracção de segundo. Há algo de reconfortante em saber que, por enquanto, há redutos onde a humanidade suplanta um algoritmo.
Não há ninguém, seja pessoa, computador ou o papa, que seja infalível. Sejam generalistas, especialistas, teóricos e praticantes, existe sempre um limite para o conhecimento que conseguimos produzir, registar ou partilhar. Por mais que saibamos, há sempre um momento em que temos de decidir se vamos levantar voo ou borregar. Se nos desviamos do obstáculo ou se vamos contra ele. Seja por instinto, por experiência, ou porque é opção mais racional, ou porque sim. Não interessa. E tanto podemos acertar, como falhar, mas ninguém pode tomar aquela decisão por nós.
Ser pai e mãe também é isto. Eu posso fazer um voo em condições perfeitas, mas parentalidade em condições perfeitas é um oxímoro, um mito, não existe. Por mais que se leia, que se aprenda, ou se oiça, há alturas em que temos de improvisar, de intuir, de decidir. Há alturas em que vamos acertar, outras em que iremos falhar. Não vamos saber sempre, e é importante que percebamos isso. Mas há alturas em que sabemos.
Naquele dia, no hospital, a Ana soube. Soube mais que os médicos, que os enfermeiros, do que eu. A mãe é que soube. E não foi porque leu livros, porque foi a workshops, porque ouviu palestras, foi só porque sim. Porque é mãe. Porque conhece o filho como ninguém.
É estúpido quando devíamos saber melhor e não sabemos por ignorância, ou má vontade. Não é questão de deixar de achar estúpidos os que “sabem”, esses vão sempre ser estúpidos (para mim). Mas ainda é mais estúpido argumentar que uma mãe, ou um pai, não acabam por ser os que sabem mais. A parentalidade é um caminho cheio de incertezas, e feito das certezas dos pais. Para o bem e para o resto, os pais é que sabem. É assim que tem de ser.
Brilhante!
Eu às vezes também acho que sei mas depois não sei nada.
Que tema difícil…
Muito bom isto: “Há algo de reconfortante em saber que, por enquanto, há redutos onde a humanidade suplanta um algoritmo”.
Tive de ir ver “borregar” ao dicionário!
Gostei muito. Venha daí o novo encontro!
O nosso (mãe ou pai) instinto mto raramente falha nestas coisas. somos animais, e às vezes esquecemo-nos que foi o instinto que nos trouxe até aqui.
Sendo eu o tipo de pessoa que acha só que o copo está a meio (nem cheio nem vazio), diria que a taxa de “acerto” do instinto dos pais não ultrapassa os 50% (ok, também sou um bocado misantropo).
Agora, volto a reforçar, se alguém tem de saber, são os pais. Às vezes para o bem, outras para o mal. Mas é assim.
Ir para casa fazer Benuron e xaropes? Consegue-se fazer isso em casa? Como?