Era uma vez o antigamente em que os desenhos animados eram muito mais interessantes?

O João Miguel Tavares postou um artigo do Henrique Raposo onde se argumenta que os desenhos animados já não são o que eram, que as crianças estão cada vez mais infantilizadas, e menos expostas a questões morais e filosóficas nos desenhos animados.

O texto tem alguns pontos interessantes, mas no geral é mais uma variação do discurso cansativo do “as novas gerações são mais estúpidas / mimadas / perdidas e como prova vou romantizar a minha infância como tendo sido espectacular e maravilhosa”, que eu observo com alguma pena a minha geração a adoptar sem grande discernimento (até porque me parece muito mais saudável dirigir o nosso desgosto à espécie humana em geral, do que que concentrá-lo em apenas uma geração).

Em relação aos argumentos. O Henrique Raposo parte da premissa inicial de que um filme animado como o Rei Leão não seria aprovado fazer hoje em dia, porque: é adulto, negro e shakesperiano. E não seria possível por causa da infantilização dos nosso dias: as crianças não têm capacidade de verem uma história tão densa como o Rei Leão. O Henrique sabe isto porque fez a experiência. Não sabemos pormenores, mas podemos imaginar que a experiência talvez tenha sido mostrar o filme aos primos sobrinhos, enquanto o Henrique dissertava sobre a influência de Ricardo III na caracterização do Scar, o que pode ser uma pista para indicar porque é que os primos sobrinhos não tenham aguentado mais de cinco minutos a ver o Rei Leão.

Se o Scar representa o Ricardo III, o Pumba é suposto ser quem?
E a flatulência do Pumba também é ‘Shakesperiana’?

Não vou perder tempo a tentar rebater este argumento, porque me parece absurdo dizer que as crianças e adolescentes de hoje não conseguem ver um filme da Disney de 1994. Em relação a filmes de animação abordar temáticas adultas, basta pensarmos nos temas da destruição do ambiente e da solidão serem abordados no Wall-E, ou das noções de perda e nostalgia que os Toy Story evocam, e até da representação da morte e da perda no Up, para perceber que continua a haver filmes animados que exploram várias dimensões nas histórias que contam. O João Miguel Tavares, num texto posterior (com o qual concordo em grande parte), acha que esta tendência acabou no Toy Story 3; mas parece-me prematuro anunciar a morte de um género tendo como referência um filme tão recente.

O Henrique Raposo também vai buscar o “Era uma vez no Espaço” para reforçar o argumento de que os desenhos animados actuais são mais simplistas, e que as séries antigas são mais difíceis de ver, porque são “lentas” e “dão tempo para pensar”. É verdade que as noções de ritmo, montagem e dinâmica de acção estão diferentes em grande parte dos produtos audiovisuais (não só nos desenhos animados), mas estamos mesmo a lembrarmo-nos de muitos dos desenhos animados que davam “antigamente”? Ainda no mainstream, os desenhos animados de super-heróis dos anos 70/80, por exemplo, estão para as séries actuais de animação de super-heróis como o Batman do Adam West está para o do Christian Bale. E é bom lembrar que o “Era uma vez no Espaço” não era regra num panorama de desenhos animados onde metade das séries eram anúncios de 15 minutos para vender bonecos; experimentem ver um episódio do Masters of the Universe ou dos Transformers.

Sempre achei perigoso agarrar na espada desta maneira.
Além de ser muito perigoso agarrar na espada desta maneira.

Concordo com o Henrique Raposo quando critica a higienização da linguagem. O “mata-moscas passar” a “enxota-moscas” parece-me meio pateta. Mas isto não vai avariar nenhum compasso moral de uma criança. Já a comparação que estabelece entre programas que ensinam miúdos de dois anos a contar com as longas-metragens da Disney, ou a aparente incapacidade de perceber que um miúdo de dois anos não vê televisão como uma criança de oito, também não acho que valha a pena comentar.

Em relação à infantilização. Tenho sérias dúvidas se as crianças de hoje são mais infantilizadas do que há vinte anos atrás, sendo até possível argumentar que estão muito mais expostas ao “mundo adulto”. Agora, se a comparação for em relação aos miúdos de há quarenta anos atrás, aí já não tenho dúvidas – claro que estão. Não ter de trabalhar aos oito anos pode infantilizar uma criança (mas também a torna mais inteligente e feliz). Claro que aqui esbarramos em conceitos sobre a infantilização, que por sua vez esbarram em conceitos sobre desenvolvimento e maturidade. O mais fácil é admitir que, neste caso, estamos a debater conceitos subjectivos de infantilidade. Indo por aqui, sabem quem é que também está mais infantilizado? Tudo. Todos nós. A ideia de que a vida não é só trabalho, que os pais também podem brincar com os filhos, que há pessoas de quarenta anos de t-shirt na televisão portuguesa a gritar coisas como “granda maluco!” e que milhares de pessoas vêm concursos de pseudo-celebridades a saltar para dentro de uma piscina, também podem ser sinais inequívocos de infantilidade geral para qualquer pessoa que tenha nascido na primeira metade do século passado. Mas isso não quer dizer que estejamos a tornar-nos amorais ou a perder inteligência.

E, claro, a infatilização da política.
Acho eu.

Nunca tivemos tanta escolha como actualmente, e tanto acesso a coisas de boa qualidade. É bom não termos todos de gramar com a chachada da Música no Coração no Natal. Podemos ver o Merry Christmas, Charlie Brown, o It’s a Wonderful Life ou, claro, esse grande clássico natalício chamado Die Hard. Felizmente já não vivemos sob a tirania imposta pelo Agora, Escolha, forçados a escolher entre o Barco do Amor ou a Ilha da Fantasia. Voltando aos desenhos animados, podemos ver Anime, actual ou antigo, revisitar clássicos da nossa infância ou espreitar o que de bom o Cartoon Network continua a produzir. Mesmo as excepções que o João Miguel Tavares apresenta, chegam para inúmeros serões só com desenhos animados actuais de qualidade. E também é verdade que a maior oferta trouxe muita coisa de má qualidade. Mas se alguém tem culpa que os nossos filhos só vejam porcarias na televisão, é possível que esse alguém sejamos nós.

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8 Comments

  1. é pá, émêmisso!
    Ontem li o artigo do HR e a MariAna (oops… a minha mulher) e eu chegámos (e parámos) num ponto que referes:o HR não vê filmes de animação desde 1994!
    (eu diria que HR nessa altura era mais calduços e viagens camaleónicas pelos corredores do liceu, mas enfim, deve ter dado para ler muito)
    Ele deve ter feito zapping para ver se conseguia entreter os sobrinhos, calhou no Rei Leão e daí à regra geral e respectiva dissertação sobre o tema foi um tirinho (até porque ser escritor semanal implica agarrar a inspiração seja por onde e como for).

    Felizmente há muitíssimo boa animação a ser feita por aí, muita dela em “mainstream”. Para isso foi preciso papar muita pequena sereia e aladino (salvoseja), mas a verdade é que os blockbusters dignos desse nome (incluindo o rei leão) são-no porque têm iemnsa densidade (sendo que o rei leão nem é o melhor exemplo, mas tem muito valor por ter sido dos primeiros da era um-ou-dois-blockbusters-por-ano dos estúdios de animação).
    mas enfim, o HR tem obrigação de escrever em estilo conclusivo e em jeito de isto-saíu-me-da-cabeça-e-é-mesmo-assim-sem-volta-a-dar, o que não deve ser nada fácil.

    E nem vou entrar pelo género da animação em sentido amplo, que está óptimo e recomenda-se (prezo muitos os meus 6 anos seguidos de Cinanima no cinto).

    No fundo no fundo o gajo é um velho do restelo com 30 e poucos anos.

    Grande abraço

    p.s. – bem dita hora que acabaste a tese, para ti e para nós

    • e não te sabia veterano de Cinanima, vou ter de te sacar umas recomendações um dia destes (confesso que não conheço muita coisa fora do ‘mainstream’). Grande abraço!

  2. Eu acho que não são os pais a terem culpa do que os miúdos vêm na televisão (em grande parte). Desde muito pequenos que eles descobrem o Canal Panda, o Cartoon Network e afins e, além de gostarem de ver o que dá é sobre isso que falam na escola. E os amigos vêem por isso eles têm de ver também.
    Concordo com quase tudo no texto, só lamento mesmo o último parágrafo em que o meu rico “Música no Coração” é “uma chachada” e o “Agora Escolha” uma tirania. Nunca gostei do Rei Leão (com ou sem Shakespeare) mas compreendo quem cresceu tendo esse filme como o primeiro da sua memória de infância. E se filmes como “Entrelaçados” me fazem gostar de tampões de ouvidos, compreendo quem precise de o ver para receber um boost de energia positiva. Simplesmente não acho que o cinema de animação esteja morto. Apenas diferente. E nós adultos.

    • Sim, claro que a única coisa que os pais podem (devem) fazer é orientar; mas já é ter um papel importante, esse de criar uma ‘dieta’ cultural de alguma diversidade.

      Não retiro nada em relação ao Música no Coração, 🙂 mas já estou arrependido de ter sido tão duro com o Agora Escolha, um programa que salvou muitas tardes da monotomia, e, muitas vezes, mostrava coisas com alguma qualidade. Espero que a Vera Roquette me perdoe. 😎

      E agora vou ter de ir criar um Goodreads Challenge!

  3. É pá, mas não é suposto as crianças serem infantis? É que ainda por cima acho mesmo que infelizmente elas são colocadas em choque com o mundo real cada vez mais cedo… O que também dá a liberdade aos adultos para se infantilizarem, até na assembleia da república (esta parte do post é aquela de partir a rir).
    Parece-me que o Henrique Raposo, com que já “debati” o artigo sobre a educação das crianças tem um forte generation gap com as crianças, quando o mais habitual é termos com os adolescentes. É mesmo um caso sério. Como todos os generation gap, o que melhor temos a fazer é aceitá-los. E isto é o que tento pensar enquanto vejo as miúdas de 16 anos de umbigo à mostra em pleno inverno sem um casaquinho ou um kispo, “ai que se constipam”.
    Com as nossas crianças, como sempre, o melhor é tentarmos proporcionar-lhes as melhores escolhas, dentro do possível, com todos os erros próprios dos pais.

    Quanto aos filmes de hoje em dia, só tenho pena que mesmo os com animais fofinhos, terminem muitas vezes à batatada, mas pelos vistos, é a vida. E isso tanto acontecia no Rei Leão, como no Capuchinho Vermelho 1 com o coelho malvado, como no 2, em que saí do cinema em estado de choque, mais do que a minha filha, como na Revolta dos Perús (viagem alucinante no tempo wtf?). Felizmente nos filmes termina tudo bem.

    Já agora uma nota cultural, recomendo a página “As crianças são muito infantis” no FB.

    E parabéns, como sempre.

    • Exacto. Às tantas também me apeteceu explorar a questão da perversidade de pensarmos em “infantil” como algo tendo só uma conotação negativa, daí ter-me posto a pensar que, aos olhos de alguém nascido no início do séc XX, muito do que temos hoje na sociedade (tipo pais a brincar com os filhos) poder ser considerado “infantil”, mas preferi deixar o post focado na questão dos desenhos animados.

      Gira a página, já estou a seguir!

  4. Não estou de acordo com os seus argumentos. Penso que hoje em dia existe mais variedade mas isso não significa que os desenhos tenham o mesmo caracter e objetvio que tinham.

    Hoje, os desenhos, uma grande parte deles são feitos para consumidores. Isto é, são puro entretenimento, excentricos e mensagens realmente pouco pedagogicas.

    Inclusive muitos deles já usam mensagens para o consumo e a promoção de produtos. Como por exemplo o “pular a cerca” com as suas batatas fritas e consumo desmedido. Enfim, são assuntos que nós não conseguimos aprofundar tão bem quanto as pessoas que trabalham na área e os estudiosos de humanidades.

    Pessoalmente penso que não é uma questão do antigamente era melhor nem de pensarmos que só nós é que estamos bem. Nada disso. É uma reflexão. O argumento de variedade é uma ilusão.

    Veja a Heidi. Em nenhum episódio há violência. Os episódios são sempre a mesma coisa. Mas a consciencia que nos traz é absoluta. Quando vi a Heidi lembrei-me de que sou um humano e que existe mais além de dinheiro e coisas para comprar. É o que os desenhos hoje não querem transmitir. Todos eles são construidos em mundo de consumo, violento e irracional. E os infantis são absurdos.

    Estão a fazer-nos o mesmo que fazem aos animais. Nós só servimos para consumir e fecham-nos a porta do conhecimento. Os grandes autores e pensadores já estão escasos e cada vez mais estamos a perder a humanidade. É uma imagem terrivel mas é a verdade.

    • @Ro301, obrigado pelo comentário, vou responder parágrafo a parágrafo:

      “Não estou de acordo com os seus argumentos. Penso que hoje em dia existe mais variedade mas isso não significa que os desenhos tenham o mesmo caracter e objetvio que tinham.”

      Não percebo como é que se possam fazer grandes generalizações desse género. O que têm em comum desenhos animados como Tom & Jerry (anos 50), Masters of The Universe (anos 80) e a Heidi (anos 70)? Carácter e objectivos? Não me parece.

      “Hoje, os desenhos, uma grande parte deles são feitos para consumidores. Isto é, são puro entretenimento, excentricos e mensagens realmente pouco pedagogicas.”

      Parte dos desenhos sim, mas isso já acontece há mais de 30 anos. Os Masters of the Universe, os Transformers, os Thundercats, p.ex, eram desenhos animados que existiam SÓ para vender bonecos.

      “Inclusive muitos deles já usam mensagens para o consumo e a promoção de produtos. Como por exemplo o “pular a cerca” com as suas batatas fritas e consumo desmedido. Enfim, são assuntos que nós não conseguimos aprofundar tão bem quanto as pessoas que trabalham na área e os estudiosos de humanidades.”

      Eu estudei humanidades, embora não seja muito estudioso, o que pode explicar muita coisa – como não saber o que é o “pular a cerca”. Agora, é verdade que a nossa sociedade (e os meios de produção cultural) estão mais ‘consumistas’, mas esse tipo de produto já existe há muito tempo na animação infantil – tinha é menos espaço (menos canais, etc). Mas também é verdade que esta socieade consumista nos oferece cada vez mais alternativas, nunca foi tão fácil ver animação do leste, séries com 60 anos, etc. etc.

      “Pessoalmente penso que não é uma questão do antigamente era melhor nem de pensarmos que só nós é que estamos bem. Nada disso. É uma reflexão. O argumento de variedade é uma ilusão.”

      Todas as reflexões são legítimas, a minha reflexão é que o facto de eu poder decretar que os meus filhos não vêm desenhos animados da actualidade e vão crescer apenas a ver Heidi e produtos que eu decidir importar, é uma liberdade infinitamente maior do que todos termos de ver o que dá na televisão ao Sábado de manhã.

      Eu considero que ainda existem produtos de qualidade (embora exista muita porcaria), mas quem achar o contrário tem uma enorme extensão de alternativas – coisa que não tinha antes.

      “Veja a Heidi. Em nenhum episódio há violência. Os episódios são sempre a mesma coisa. Mas a consciencia que nos traz é absoluta. Quando vi a Heidi lembrei-me de que sou um humano e que existe mais além de dinheiro e coisas para comprar. É o que os desenhos hoje não querem transmitir. Todos eles são construidos em mundo de consumo, violento e irracional. E os infantis são absurdos.”

      Eu não vi (nem quero ver) todos os desenhos animados actuais para poder decidir se são todos violentos e irracionais, mas uma olhadela pelo fantástico – https://www.commonsensemedia.org, desmente essa teoria.

      “Estão a fazer-nos o mesmo que fazem aos animais. Nós só servimos para consumir e fecham-nos a porta do conhecimento. Os grandes autores e pensadores já estão escasos e cada vez mais estamos a perder a humanidade. É uma imagem terrivel mas é a verdade.”

      Que “humanidade” é essa que estamos a perder? A que fez do séc XX o século com mais mortes por crimes, guerras e atrocidades na história da Humanidade? A humanidade das elites, onde apenas alguns tinham acesso ao conhecimento e à educação?

      É verdade que a sociedade está cada vez mais consumista, mas também é verdade que temos acesso a cada vez mais conhecimento. Informação e conhecimento não é a mesma coisa, certo, mas é um primeiro passo rumo ao abandono da ignorância, esperamos. É certo que tudo é relativo, mas não é no passado que estão as respostas.

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