‘Trigger warning’: o artigo do Público ‘Há livros que nos podem fazer mal?’ pode danificar-vos o cérebro

Há cinco meses a Atlantic publicou um ensaio provocador chamado “The Coddling of the American Mind“, sobre um alegado “excesso de sensibilidade” que começou a afligir os universitários norte-americanos. De acordo com o texto, há uma nova geração de estudantes que, além de estar mais sensível ao politicamente correcto (uma expressão ambígua que normalmente é invocada por pessoas que gostam de dizer asneiras sexistas ou racistas), começou a exigir que temas abordados numa sala de aula sejam precedidos por trigger warnings – umas espécie de pré-avisos para temas que possam desencadear traumas psicológicos. Mais ou menos na mesma altura, a Aeon também editou um ensaio inspirado na questão dos trigger warnings, mas num registo menos preocupado com dados empíricos e mais focado nas relações entre a literatura e a sociedade.

Se te identificas com esta imagem, parabéns - és um idiota.
Se te identificas com esta imagem, parabéns – és um idiota.

Alguém no Público leu estes textos e, sabendo bem que existe um bom mercado para artigos com o mote “a nova geração é sempre pior que a minha”, resolveu fazer uma espécie de mashup resumido do tema. O resultado é este Há livros que nos podem fazer mal?, assinado por Isabel Lucas, um artigo que agarra num tema interessante, e que o explora nas suas dimensões mais batidas: a “infantilização da geração ritalina”, a nova ditadura do politicamente correcto, e o coitado do Jerry Seinfeld, um bilionário que já não pode fazer a sua estúpida piada do rei gay porque os miúdos hoje em dia… E depois há a tentativa de ligar o fenómeno com os movimentos criacionistas proibirem livros sobre evolução, que não se percebe se é maldosa ou apenas mal-informada.

O critério chave para perceber que esta reciclagem de conteúdo não-original está mesmo mal amanhada (e nem links para as peças originais faz), é que o artigo nem se dá ao trabalho de explicar o que é um “trigger warning”, que é um dos conceitos fulcrais nestas peças (o título original do artigo da Atlantic era “How Trigger Warnings Are Hurting Mental Health on Campus”), e porque é que este tema está a ser tão debatido.

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Também fiquei apreensivo quando li que estudantes americanos queriam “evitar” discutir certos assuntos, ou livros, nas salas de aula. Mas, investigando um pouco mais sobre o assunto, não é bem isso que parece estar em causa. Actualmente, nos Estados Unidos, estão a acontecer conversas muito interessante sobre racismo, sexismo, classismo, etc. Estes temas não são novos, mas continuam relevantes numa sociedade que ainda lida com violência de género, discriminação sobre orientação sexual, abusos de poder, ou desigualdade no acesso a coisas básicas (educação ou saúde, p.ex.).

O que parece estar a mudar é que estas conversas se tornaram mais vocais, ganharam visibilidade em certas franjas da esfera pública, da indústria do entretenimento e, pelos vistos, nas universidades americanas. E isto pode ter a ver com uma nova geração que está mais bem informada, mais desempoeirada e, sobretudo, mais consciente dos desequilíbrios entre privilegiados e oprimidos. É esta geração, que também é mais sensível à maneira como a sociedade trata as suas vítimas (“a mulher que estava a pedi-las”, “o miúdo que deve ter feito alguma coisas para ser bullied”, “o tipo que se deixa ofender”) que quer discutir se as universidades devem ser instrumentos que reforçam essas desigualdades, essa opressão, ou os tais “safe places”, onde essa minoria se possa sentir segura e minimamente empowered.

Não sei se o caminho é encher os manuais e os inícios de cada aula com trigger warnings. Muito menos proibir livros. Tenho algumas dúvidas sobre a exequibilidade dessa ideia, ou a sua eficácia, Há professores que até dizem que já o fazem sem grandes problemas. Mas o que acho importante é discutirmos de facto este assunto, sem a necessidade de recorrer a exemplos anedóticos (como haver um estudante menos feliz que pediu para se deixar de usar a palavra ‘violação’ na aula de Direito); e, sobretudo, reconhecendo que estarmos perante uma geração que é mais sensível para os direitos das minorias, e que se preocupa com conceitos tão fundamentais para a civilização como ter empatia pelo próximo. Pode ser um óptimo sinal.

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9 Comments

  1. Sempre que leio disparates começados por “os miúdos de hoje em dia” tenho logo uma pequena apoplexia. Vendo pelos sobrinhos do Nuno, 14 e 17 anos, e especialmente a miúda mais velha, vejo-a com uma sensibilidade, atenção e níveis de informação muito superiores aos que eu via em nós na mesma idade, e acho mesmo que nunca houve putos tão “bons” como os de hoje e que será essa a tendência desejável numa sociedade em constante evolução.
    “Ah não sei quê os telemóveis e não sei quê”, o horror, vindo da geração que passou as refeições em família a olhar para a televisão e a ver o telejornal durante o jantar.

    • Também sinto isso. E também que há-de chegar o dia que um filho (ou neto) meu me há-de chamar a atenção para um absurdo qualquer que eu esteja a dizer, ou pelo facto de eu lhe ter dado carne produzida pelo complexo agro-industrial, ou assim, aguardo temerário por esse momento. Aquele momento de “uh-oh acho que o meu avô é um bocado racista…” :S

  2. Muito obrigada por este post.
    Também estou rodeada de putos fantásticos (meus filhos incluídos, claro 😛 ) com uma atenção e sensibilidade para o mundo que me emocionam e me impedem de cair nessa do antigamente é que era bom. Há coisas que são mais fixes agora e coisas que eram mais fixes no “meu tempo” (não sei bem qual é, o de há 42 anos? mas talvez o meu não seja o mesmo que o de outras pessoas com 42 a ler este post pq o meu é o de há 42 anos… no Canadá? e por aí fora, peço desculpa por ocupar espaço a falar do óbvio).
    Adiante, o que queria dizer é que a tua análise me fez lembrar esta do polémico Peter Singer: “Aquilo que uma geração considera ridículo é aceite pela geração seguinte, e a terceira estremece quando recorda aquilo que a primeira fez.”

  3. e ficou por dizer que, em relação às liberdades individuais, não trocava “este tempo” por qualquer outro (mesmo com toda a manipulação de informação a q somos sujeitos)
    e agora lembrei-me de outra, do Chomsky: “Citizens of the democratic societies should undertake a course of intellectual self defense to protect themselves from manipulation and control, and to lay the basis for meaningful democracy.”

    (estou em modo citadora, hoje)

    • É mesmo. Não me queria auto-citar, porque o Chomsky diz o mesmo e melhor do que eu, mas sempre achei que devia haver uma disciplina no secundário chamada “Educação para os Média”, ou algo semelhante, que explicasse como funcionam as notícias, as percepções que os media criam, etc. Podia também fazer parte de uma disciplina mais geral sobre funcionamento da sociedade.

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