Quando soube que ía ser pai de uma menina, comecei a pensar em ideias para posts temáticos sobre pais e filhas. Inevitavelmente, pensei logo em fazer alguma variação daqueles posts clássicos do “pai caçadeira” (aquele que espanta todos os namorados da filha).
Fiquei desconfortável. Primeiro, porque é um lugar comum, tipo posts sobre mudar fraldas ou a escola. Depois, por causa da ideia de ter de proteger a minha filha, ou melhor de a superproteger. Dos homens, do mundo exterior, e, claro, da minha cabeça retrógrada, de forma diferente do que se fosse um filho.
O cliché não é só incómodo por ser um lugar comum que convinha largarmos, mas também o é porque por vezes se torna verdade (mesmo que pelas razões erradas). Isto porque num mundo em que as mulheres, muitas vezes, são colocadas em posições de subalternidade em relação aos homens, o caminho para o empoderamento também passa pela protecção.
Não sei se teria pensado nisto assim se não fosse o #gamergate. Explicando de forma muito simples, o #gamergate foi uma polémica de internet gigante que, a partir de uma série de críticas sobre a relação do jornalismo no mundo dos videojogos, descambou em campanhas sexistas e misógenas de alguns gamers contras jornalistas e feministas na indústria.
A parte mais chocante do #gamergate foi ver o lado sombrio da cultura nerd. A cultura nerd, com a qual me identifico em muitas coisa, deixou – por momentos – de ser sobre adultos infantilizados que se divertem no GTA e preferem a política de Westeros à chafurdice de S. Bento, para passar a ser sobre ameaçar mulheres de morte, violação e tentar humilhá-las em praça pública.
Não descobri que ainda havia machismo com estes episódios, mas percebi que, mesmo em países mais liberais, ainda estamos longe de ser uma sociedade igualitária. Sendo um assunto que me interessava, acompanhei uma série de discussões e fui aprendendo algumas coisa sobre feminismo e o que dizem (e querem) realmente as feministas. Aprendi umas coisas.
São, pelo menos, um ponto de partida para poder começar a pensar em mim com um pai feminista, e contribuir (ou pelo menos não piorar as coisas) para um mundo mais igual e justo. Estas são algumas delas.
#1. Não sou eu que defino o que é feminismo
Desde que me lembro de pensar, que sempre me considerei “pelos direitos das mulheres”. Igualdade laboral, direitos reprodutivos, políticos, o clássico. Mas também me lembro sempre de acrescentar aquele toque ligeiramente paternalista (ou machista) de: “mas sem necessidade desses feminismos radicais”.
Como se me coubesse a mim definir o que deve ser o feminismo, ou o que é radical ou não. É uma variação ligeira de mansplaining. Eu, homem, branco (durante parte do ano), privilegiado, a dizer a uma mulher quais devem ser os limites das suas reivindicações ou o que ela está realmente a sentir.
É como as pessoas que dizem que não palavras derrogatórias (i.e. maricas, e coisas piores) com significado sexista, como se pudessem ser elas a recontextualizar a semântica e a história de uma palavra. Ou como se eu fosse explicar ao Andrea Pirlo, o futebolista de 54 anos que joga na Juventus, qual a melhor maneira de se posicionar em campo.
Claro que, mesmo as próprias correntes feministas, por vezes é difícil chegar a uma definição consensual, a ponto aqui é que não me cabe a mim dizer qual é o “melhor feminismo”, mas sim ouvir o que diz quem sabe. Podemos, no entanto, partir de base comuns, e isto leva-nos ao segundo ponto:
#2. O feminismo é sobre igualdade, não superioridade (ou querermos ser “iguais”)
Há uma citação muito engraçada no filme do Capitão Falcão, dita pelo próprio quando confrontado com a ameação de um grupo de vilãs feministas: “Não há nada mais perigoso do que uma mulher que pensa que é um homem”.
A citação é engraçada porque o Capitão Falcão é um cretino, ou não seria um super-herói fascista ao serviço de uma ditadura colonialista. E também é engraçada, ou nem tanto, porque muitas pessoas pensam que o feminismo é uma variação desta ideia. Ou que é sobre mulheres que querem ser homens. Ou sobre mulheres que querem ter mais poder que os homens, para que possam mandar neles.
Há mesmo quem chegue à brilhante conclusão que feminismo é o oposto de machismo. Que uma feminista é uma mulher que quer ter o direito de dar uns chapadões num homem, e depois ir beber umas cervejas com os polícias do bairro.
Claro que isto faz tanto sentido como dizer que os abolicionistas da escravatura queriam era poder escravizar os donos brancos. O feminismo, na sua raiz, é um movimento igualitário, que pretende alcançar direitos e oportunidades iguais para homens e mulheres. Repitam comigo – DIREITOS E OPORTUNIDADES. A verdade é que vivemos em sociedades desiguais, e essas desigualdades podem manifestar-se a vários níveis, políticos, sociais, económicos ou culturais. Mesmo que não existam em termos legais, por exemplo, continuam por aí (ver caixas de comentários onde se discute algum assunto relacionado com estes temas, por exemplo).
#3. O patriarcado é real
Não percebo nada de antropologia, mas entre os vários factos de almanaque que decorei para tornar situações sociais menos complicadas, tenho um sobre ainda existirem algumas “sociedades matriarcais” espalhadas por tribos remotas do mundo”.
Mas é engraçado, e prova de que não sou muito esperto, que o facto de achar interessante a existência – excepcional – de sociedades matriarcais no séc. XXI, nunca me fez atingir a conclusão lógica desta observação: que o resto do mundo vive praticamente todo em sociedades patriarcais. Lembro-me que a primeira vez que vi uma feminista referir-se ao “patriarcado” achei aquilo meio caricato, uma ideia de extremistas.
Mas vendo bem, salvo algumas excepções, os nossos governantes são, na maioria, homens, as nossas leis mais importantes foram escritas por homens, a religião com mais poder na sociedade é dominada por homens, a nossa história foi escrita por homens, as grandes corporações, na sua maioria, são lideradas por homens, as indústrias culturais também, e por aí em diante. Nem interessa se achamos isto mau ou bom, execrável ou inevitável, anormal ou natural – mas é difícil negar que é assim.
E está certo que a sociedade evolui muito, que as coisas estão diferentes, etc. Mas não nos esqueçamos que há cinquenta anos atrás uma mulher não podia ir ao estrangeiro sem autorização do marido. Há 50 anos atrás. Em Portugal. Isto quer dizer que ainda há pessoas vivas a quem isto parecia natural. Pessoas que educaram filhos e filhas, que tomam decisões, que escrevem coisas ou que emitem sentenças aberrantes. Mesmo que possamos dizer que o patriarcado não existe nas nossas leis, ele ainda existe nas nossas cabeças – nos nosso modelos mentais – , e isso faz diferença.
#4. O sexismo é pervasivo e cultural
Umas das críticas que mais transtornou a comunidade gamer é a ideia de que os videojogos são produtos de uma indústria machista. Está certo que o facto de eu gostar de jogar GTA V não faz de mim um porco machista, mas é completamente legítima a crítica feminista que é absurdo que, num jogo com uma dimensão gigante, a única personagem feminina interessante que não é um estereótipo, apareça apenas durante 10 minutos (e é umas das condutoras contratadas que exige menos dinheiro no jogo).
Claro que isto não acontece só nos videojogos, acontece em filmes, séries, livros, em toda a indústria de entretenimento. Acontece na maioria dos filmes mainstream onde as mulheres são apenas acessórios narrativos, ou em séries onde aparecem como umas tontas cujo drive principal na vida é agarrar um homem. É tão raro ver mulheres em papéis assertivos no cinema comercial (a não ser que seja um controlo mesquinho, de querer ‘domar’ um homem), como é ver actrizes de 50 anos que sintam que não têm de perder a capacidade de rir como um ser humano para continuar a trabalhar.
Ninguém pode negar (excepto por ignorância ou calculismo) que o alcance e os impacto da cultura na formação da identidade, de percepções ou opiniões, é brutal. As nossas filhas crescem a ver estas coisas. Precisamos de mais filmes como o Frozen, um sucesso de bilheteira que mostra que podemos ter filmes progressistas e que descartam estereótipos.
Em relação ao argumento clássico de que “as feministas criticam o 50 sombras de grey, mas depois aquilo é um sucesso de bilheteira, portanto: touché feministas!”; não é sequer um crítica ao feminismo, é so idiotice.
#5. A distinção entre sexo e género
Sexo e género são coisas diferentes. Ser um homem ou ser uma mulher, são qualificações tão (ou mais) influenciadas pelo contexto cultural em que crescemos, do que pelos nossos cromossomas. A educação que recebemos, os brinquedos que nos dão, os heróis que temos, o que vemos, lemos ou ouvimos, tudo isso influencia a ideia que temos do que é ‘ser um homem’ ou ‘ser uma mulher’. O género é isto. Não é uma característica binária – não é ser ‘m’ ou ‘f’. É um espectro, uma linha, que se relaciona com identidade, cultura, e e explicado por ciências como a psicologia, a neurociência, etc.
Gosto da dimensão do feminismo tem contribuído muito para desmontar este tipo de ideias, que tentam arranjar uma justificação natural, ou biológica, para uma série de condicionalismos que são mais culturais que outra coisa – como os homens serem “o sexo forte”. Isto é elementar para quem convive normalmente com pessoas civilizadas e abertas. Mas a realidade não é feita de pessoas civilizadas e abertas. É difícil estimar quantos miúdos sofrem por serem reprimidos, maltratados e castigados por terem comportamentos que não encaixam nos ideais antiquados e preconceituoso que temos do que significa ser homem ou mulher. Mas sabemos que não são poucos.
É importante desmontar vários destes preconceitos, o que o feminismo faz, sobretudo a ideia que isto tem a ver com biologia. Ou natureza. E mesmo que tivesse? Não é por termos um cérebro reptiliano que andamos por aí a esmagar cabeças (por mais que nos apeteça).
#6. O feminismo é para todos*
Mais do que ser um movimento contra o sexismo e a opressão da mulher, o feminismo é um movimento igualitário que pretende construir uma sociedade mais justa, mais solidária, mais inclusiva. Não é um movimento sobre sermos todos iguais, mas sim sobre podermos ser aquilo que queremos ser. É um movimento ligado aos direitos e liberdades fundamentais, que beneficia a sociedade em geral, e também os homens. Até os estúpidos.
É um movimento radical, sim. Revolucionário. E claro que sim! Traz uma ideia de transformação profunda da sociedade. Não revolucionário no sentido de querer prender barbeiros misógenos e levá-los para o Campo Pequeno para serem flagelados (mesmo que apeteça), mas no sentido de ser ambicioso, e transformador.
Pretende lutar tanto contra as vítimas de excisão nos países em desenvolvimento, como contra o fardo de ser mulher minoria (étnica, sexual ou social) em Portugal. Foi tão importante para que todos possamos votar como para que os homens possam hoje partilhar a licença de parentalidade com a mãe. É para as mulheres que querem aceder ao mercado de trabalho em termos iguais aos dos homens, ou para os homens e as mulheres que queiram ficar em casa com os filhos. Para acabar com a ideia da mulher que só se realiza sendo mãe, ou do pai retardado que não consegue ficar sozinho a cuidar de uma criança.
É para acabar a ideia que uma mulher de sucesso é aquela que equilibra filhos e carreira, e que o homem de sucesso é o gajo que chega a CEO e tem tempo para ver os jogos do filho ao fim de semana. É para acabar com discriminações, ideias feitas e preconceitos sobre o que deve ser uma mulher ou um homem. Para dizer que todos podemos ser aquilo que escolhemos ser, na nossa relação com o mundo e com os outros. Sem deixar ninguém de fora. Isto tem um potencial incrível para a nossa evolução como espécie, um futuro em que todos podem participar em igualdade de condições. Talvez um dia.
*que é o título (traduzido) do excelente Feminism is for Everybody, da feminista, activista, professora, escritora, intelectual norte-americana, bell hooks.
Gostei muito do post. De facto, apesar de defender plenamente os ideais, eu própria tinha algum preconceito com a palavra, no sentido de surgir de feminino. Achava que “igualismo” por exemplo era mais adequado. Mas percebe-se as razões de assim ser, acho que era mesmo preconceito meu. Quando soubemos que no primeiro filho iríamos ter um filho o meu marido disse logo que ficava mais tranquilo porque achava que com uma menina teria mais preocupações em relação a coisas como abusos. Mas de facto quanto a isso em particular, são tantas as crianças do sexo masculino que são abusadas que sinto que a preocupação é igual por agora. Já na adolescência, acredito que não será bem assim e devido ao mundo em que vivemos uma jovem possa gerar realmente mais preocupações nesse campo.
É verdade que dentro do Feminismo há várias correntes, algumas delas até se confrontam frequentemente. Neste caso quis agarrar numa definição mais abrangente, que pode ser considerada “radical”, mas se calhar não extremista (embora, mais uma vez, não me acho muito qualificado para debater as lutas académicas feministas com grande profundidade). A bell hooks é suficientemente revolucionária e abrangente para mim, por exemplo.
Também acho natural que possamos sentir mais preocupações em relação a uma filha, dependendo dos contextos e daquilo que é a nossa percepção do meio ambiente. Como também podemos recear que os rapazes se exponham em meios mais dados violentos – tipo, se calhar é mais provável um rapaz ser esfaqueado do uma mulher, não faço a mínima ideia – por qualquer razão. Mas também é importante não educarmos com “mentalidade de vítima”, sendo que não sei bem o que isto pode implicar. Mas, para o bem e para o mal, a violência física é um pouco mais fácil de sinalizar, as influências culturais e outro tipo de discriminação são mais subtis, e os impactos difíceis de medir. É difícil navegar nestas questões (como foi difícil estruturar este post), mas acho que estarmos alertas para a questão já é um princípio. 🙂
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