Mais um texto sobre o miúdo que foi ao Ídolos, porque nada disto é ‘relativo’

Nos últimos anos  tem-se assistido ao fenómeno cada vez mais crescente das “indignações sociais”, muito potenciadas pela internet e uma imprensa desorientada que tenta capitalizar o clique fácil. Houve o Chanelgate com a Pepa, o Pepsigate da Suécia vs. Ronaldo, o Oscargate da Pipoca Mais Doce, qualquer coisa com a EDP, e terão havido outros de que não me lembro.

Não há nada de errado na capacidade de nos indignarmos, até é um sentimento bastante louvável, eu gosto muito de me indignar. Mas estes fluxos de indignação social descambam muitas vezes em níveis  incompreensíveis de idiotice. As pessoas começam por indignar-se com algo idiota, e no processo de indignação atingem elas próprias um nível muito mais idiota que a idiotice original. Depois dá-se a fase de backlash, ou de contra-indignação, em que aparecem pessoas a indignar-se com os indignados, e também elas – por vezes – descambam em idiotices ainda maiores. Que é o que tem acontecido com a história do miúdo que foi aos Ídolos.

Eu, por feitio, permaneço em silenciosa indignação contra todos os indignados e contra-indignados, porque acho sempre que há coisas mais indignantes com que nos preocupar. Ou seja, também faço parte do problema mas não chateio ninguém (excepto a minha família e amigos, que têm de me ouvir). O mais perto que estive de descer a uma caixa de comentários e perguntar se tinha tudo enlouquecido, foi durante aquela história do Pernagordagate, em que, no seguimento de um comentário cretino no facebook, a Jessica Athaíde se transformou em bandeira feminista da imagem corporal saudável. (Nada contra a Jessica Athaíde ou a imagem corporal saudável, mas não foi nada disso que se discutiu na altura).

Mas a história do rapaz que foi humilhado em horário público pela produção de programa da SIC, por causa das suas orelhas, é diferente. O miúdo (e menor) foi a um casting dos ídolos e a produção editou as imagens de forma a gozar com o formato das suas orelhas. O rapaz recusou-se a ir à escola nos dias seguintes, sentido-se vexado e humilhado. Gerou-se uma onda de indignação generalizada, e completamente justificada. Os jornais aproveitaram, pegaram no assunto e fizeram alarido.

E é a partir daí que começaram a aparecer os comentários relativistas. De que isto não é bem bullying, que o verdadeiro problema é a família, ou a existência de concursos deste género. Algumas destas observações são até pertinentes, mas é inacreditável que se esteja a retirar um pouco que seja da culpa de quem foi responsável por aquilo, e entrar no domínio de “o miúdo pôs-se a jeito”. E também tenho pena que continuemos em insistir em julgar os outros pelos nossos padrões de adultos privilegiados e (aparentemente) cheios de auto-confiança. E pior, dizer a um adolescente que não se pode, ou deve, sentir mal porque alguém – que abusou de uma posição de poder – gozou com o seu aspecto físico perante milhões de pessoas (e todo o microcosmos da sua existência, que é a escola).

Porque o que a produção do Ídolos fez foi uma canalhice. E é diferente de transmitir só imagens de pessoas que cantam mal. Ou de ter um jurado dizer a um concorrente “tu cantas como um bode com cio”. Não me interessa discutir se isso é bom ou mau, mas é completamente diferente. Sem ser importante, até podemos dizer que se desvia da fórmula habitual do programa de deixar que sejam as próprias pessoas (normalmente adultos) a promover o seu processo de achincalhamento. E também parte de uma posição de abuso de poder e manipulação. E a prova foi de que as pessoas que se indignaram perceberam isso.

Não alinho com o argumento de que a visibilidade mediática deste caso só piorou a situação, porque o maior estrago ficou feito no momento em que as imagens foram emitidas (em horário nobre, repita-se). Claro a criança acabou por ficar no epicentro de um pequeno fenómeno mediático, mas o dano principal já estava causado. Houve um aspecto muito importante no meio disto tudo se ter tornado público: a condenação geral daquilo que foi feito. Não me interessa o que diz a família ou deixa de dizer, tão cedo um programa de televisão não fará algo semelhante. Não me interessa se o Ídolos já fez pior, a questão é que alguma coisa pode ter mudado aqui, e ainda bem.

Hoje percebe-se que não é fixe gozar com as orelhas do miúdo. Amanhã percebe-se que não há nada de engraçado em gozar com os maneireismos de outro ou com o aspecto de outra. Primeiro nos media, e depois se calhar até na escola. É importante que isto aconteça. E também que aconteça o que acontecer, com a família, os pedidos de indemnização, o que seja, que não há nada para relativizar aqui.

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5 Comments

  1. Já há algo novo para nos indignar: duas miúdas a bater num colega. E tudo o resto já são yesterday news, tal como acontece neste mundo noticioso à fast food. Indignemo-nos então!

    • Pois é. E mesmo antes de clicar no vídeo senti-me cansado só de imaginar o que aí vem (pessoas que se vão indignar com as miúdas, pessoas que se vão indignar com o miúdo, pessoas que se vão indignar com os pais, pessoas que se vão indignar com a escola, etc). Acho que esta semana já esgotei a minha quota de indignação.

  2. Não te esqueças das pessoas que se vão indignar com os idiotas que partilham o video com a cara do miúdo. Sim, porque o que ele mais precisa agora é disso. Eu não me indigno com essas (porque cansa, realmente!), mas batia-lhes. E filmava para publicar no facebook.

  3. Agora a sério, claro que o que se passa no vídeo é deplorável. Mesmo que não tenhamos nenhum contexto sobre as imagens. Ainda assim há algumas perguntas por responder (mas não na esfera mediática), e o que deveria acontecer era uma investigação e consequências disso. Mas entretanto já se montaram os tribunais nas redes sociais e já circulam os cartazes de “procura-se” no Facebook. -_-

  4. Se isto não é enervante? Repara, foi descoberto e tinha de ser feito alguma coisa sobre isso, ou seja, as queixas devidas nos locais próprios. Já foi feito. E num mundo ideal, ou num mundo com população pensante, ficaria assim. Mas não. Publica-se vezes sem fim.
    E assim, esta pessoa ainda em formação terá de carregar não só com o que lhe aconteceu, como também com o estigma de ser ad eternum aquele que levou nas trombas de umas gajas. (Sim, porque as pessoas são más.)E que todos viram. No computador, na televisão, no tablet e no telefone.
    Será que não pensam? Fazem os julgamentos públicos, como dizes, sem pensar na consequência naquele que dizem querer defender.
    Pronto, afinal ainda me indigno!

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