Este era para ser um daqueles post em que digo que tenho escrito pouco mas que nos próximos dias ia tentar voltar à programação normal, acabando por encher um chouriço de não escrever nada com um post sobre não ter escrito nada. Mas, aconteceram algumas coisas nestas últimas semanas, e gostava de escrever sobre isso.
Morreu o Guga
O Guga era o cão que a Ana resgatou ao abandono da própria mãe e das poucas esperanças dos veterinários. E que aos cinco anos de idade não teve outro remédio senão adoptar-me como dono. Tivemos o nosso primeiro momento de ligação quando, nas primeiras férias que passámos juntos, ficámos os dois sozinhos à espera que a Ana voltasse com cervejas. Lembro-me de ter fumado uma ganza, dele me ter saltado para o colo e de termos ficado ali, a comer tremoços, parados no tempo de uma bolota afegã e de um fim de tarde alentejano. Foi o início de uma bela amizade, e só faltava mesmo a cerveja. E a Ana, claro, com a cerveja.
Acordar com um cão em casa é especial. Um ser vivo que fica feliz por nos ver a sair da cama e que consegue alegrar o acordar de um noctívago como eu. O Guga trazia todas as manias de um cão mimado, mas nenhum defeito. Fazia uma barulheira histérica quando ouvia a campainha e uns xixis dissimulados pelos cantos da casa, mas era um cão simpático e bom. Adorava pessoas, era amigo dos outros cães, e tinha a atitude mais tranquilizante que um cão pode ter em relação a crianças – evitava-as.
Foi um ataque cardíaco, a meio da noite. Dizem que não é uma má maneira de morrer, espero que não. Sempre que a campainha toca continuo a sentir aquele constragimento irritado que antecedia o ladrar dele (numa espécie de loop pavloviano). Claro que ainda está cá o Paco para nos atazanar a cabeça, no bom sentido, mas foi um de nós que desapareceu. Éramos seis, e agora somos cinco. O Mexicano perguntou por ele dissemos que o Guga era uma estrelinha no céu. Se eu, aos trinta e cinco anos, tenho cada vez mais dificuldade em lidar com a finitude, não me parece que seja conceito para uma criança de dois anos. O meu ateísmo convive bem com estrelinhas no céu.
Mudámos de casa
Entretanto também mudámos de casa. É engraçado que quando dizemos às pessoas que vamos mudar de casa, gera-se de imediato uma onde de solidariedade com a antevisão do horror logístico que só pensar em mudar de casa implica: os embalamentos, os caixotes, as logísticas, as mobílias, etc. Para compensar esta perspectiva as pessoas lá dizem que “mas, pronto, a mudança é para melhor!”. Não é? Mas não foi uma decisão díficil. A nossa renda de casa era pré-austeridade, os nossos ordenados não. Por outro lado, também quisemos mudar para uma zona escolar mais simpática. Sobre a obscura delimitação geográfica dos agrupamentos escolares em Lisboa podemos falar noutro dia. Mas podemos falar já do absurdo que são os orçamentos que se recebem para fazer uma mudança. Consultámos aí umas sete empresas, com alváras e essas coisas todas, e a disparidade entre o mais baixo e o mais elevado chegou aos 1500 euros. A categoria devem estar a gozar connosco vai para a Urbanos, mas concedo que não seja um serviço para plebeus (são mudanças com design).
“Fazer” uma mudança é uma experiência desconfortável que atravessa várias semanas, desde empacotamentos a desencaixotanços, mas nada bate o desconforto do próprio dia da mudança. Lido particularmente mal com o facto de sentir que devo ser uma espécie de controladeiro de uma equipa de profissionais que faz isto todas as semanas. A única utilidade que tenho é dizer o que vai para cada divisão. No entanto, deve ser algo relacionado com o facto de ter seis homens a entrar-me pela casa e a carregarem-me os livros e armários, que me diz que eu devo ser o líder que eles nunca tiveram (ou quiseram).
Mas claro que a vida não é só sobre a pressão social de sentirmos que talvez se esteja a “descer na vida” (ou de número de assoalhadas) ou de ser líder, também é sobre o Mexicano adoecer no dia da mudança e vomitar-se todo na sala da casa nova, em pleno processo de descarregamento de móveis. Acabámos por ir dormir a casa dos meus pais, uma resolução que embrulha com alguma ironia esta história de mudanças e as expectativas da vida adulta.
Descobrimos o unclutter (e quilos de lixo)
Uma das vantagens de mudarmos para uma casa mais pequena, foi termo-nos obrigado a ser implacáveis com coisas que não usamos ou não têm qualquer significado afectivo ou utilitário. O Seinfeld tem um bit recente muito bom sobre esta questão de andarmos na vida a acumular lixo, lixo e mais lixo.
“All things on Earth only exist in different stages of becoming garbage. Your home is a garbage processing center; where you buy new things, bring them to your house and slowly crapify them over time”.
Mesmo depois de termos enchido quatro sacos grandes do lixo com roupa para dar, de ter vendido metade da minha colecção de CDs e de termos despachado mais algumas coisa no OLX, vimos que tinhamos uma série de coisas que não tinham qualquer utilidade ou valor, excepto uma vaga promessa de “qualquer dia poder dar jeito” ou a nostalgia de “ah mas comprámos isto quando o Heroes era uma série boa”. Foram dez sacos do lixo e mais uns trocos:
E uma casa nova
Estamos num bairro simpático da Lisboa moderna, acho que nos vamos dar bem. E a casa começa a compor-se; as caixas vão desaparecendo, os móveis vão encaixando. Já tenho um espaço para escrever, portanto não me posso queixar. Há, no entanto, uma aberração nesta casa, que me tem atormentado. Nunca vi nada assim.
Algo que só pode ter originado de uma mente deformada, até perversa. Todas as manhãs, tenho de me deparar com esse freak show de home decoration. Todas as noites retiro-me angustiado com aquela visão. Já devem ter adivinhado que estou a falar da maneira como abrem as portas dos armários da cozinha. Todas as portas destes armários abrem na direcção oposto do que uma pessoa de bom senso esperaria. Aliás, o truque, depois de três semanas a fazer força na direcção contrária, tem sido pensar em como é que eu acho que a porta vai abrir e depois abri-la ao contrário. Vejam por vocês a enormidade desta combinação de instalação artística com instrumento de tortura psicológica:
Mas pronto, uma pessoa habitua-se. O Mexicano também parece estar a adaptar-se bem. Outro dia disse “a casa nova é muito boa! é pequena!”.
Sem dúvida que a melhor parte de mudar de casa é conseguirmos finalmente dar ou deitar fora o que não nos faz falta nenhuma mas teimamos em achar que “um dia..”. Quando mudei de casa não só deitámos quilos fora como me senti bastante mais leve.
Que a vossa estrelinha no céu continue a brilhar sempre.
🙂 As portas se fosse canhoto estavam perfeitas…