Há um fenómeno conhecido por gravidez histérica, ou psicológica, em que os sintomas da gravidez se manifestam numa pessoa não grávida. É mais comum em animais como cães ou ratos, mas também ocorre em mulheres e homens.
Eu não tive uma gravidez histérica. Espero eu, até porque passei nove meses a beber álcool pelos dois, o que faria de mim uma péssima grávida histérica. Mas, em retrospectiva, é bem possível que tenha tido uma ligeira depressão pós-parto histérica. Mesmo sem que a minha mulher tenha tido depressão pós-parto. É que é difícil explicar algumas atitudes que tive naqueles meses iniciais.
A verdade é que, durante os primeiros meses de vida do Mexicano, esta casa não foi só pós-grávidas emotivas, mamilos em sangue e bebés incompetentes. Também andou por aqui um tipo cujas faculdades de bom senso talvez não estivessem em grande forma. Sim, esse tipo era eu, e estas são as seis maneiras em que, tenho de admitir, me comportei como um atrasado mental nessa altura:
#1 – Anunciar que não queria ter mais filhos
Não há nada de chocante em alguém dizer que só quer ter um filho. A não ser que sejamos extremamente católicos, ou extremamente patrióticos, mas, nos tempos que correm, numa perspectiva pró-natalista, ter só um filho ainda é melhor do que não ter nenhum.
Sempre que era obrigado a ter a conversa dos filhos, eu concordava que, se fosse para ter, preferia ter mais do que um. Sempre se entretém um ao outro. Mas é possível que essa opinião se tenha alterado temporariamente passadas umas semanas depois de ser pai. E que essa opinião tenha sido transmistida à minha mulher, com ar de lunático e certeza maníaca, em palavras não muito distantes de É QUE NEM PENSAR QUE VAMOS TER MAIS FILHOS NÓS NÃO VAMOS CONSEGUIR PASSAR OUTRA VEZ POR ESTES TORMENTOS E ANSIEDADES CONSTANTES É IMPOSSÍVEL E A RESPONSABILIDADE? IMPOSSÍVEL! OUVISTE? IMPOSSÍVEL!
E também é possível que esta demonstração de profundo terror pela ideia da paternidade não fosse a coisa mais inteligente, sensível e humana de transmitir a alguém que estava a viver a maternidade de forma apaixonada e natural (e que esperava que o marido não fosse um lunático).
#2 – Ser irritante com a desarrumação da casa
O regresso ao trabalho depois do primeiro mês não foi fácil. Ter de passar a maior parte do dia longe do filho e da mulher, depois de quatro semanas em que se começa a criar a primeira ideia de uma família maior que dois, é duro.
O que também não foi fácil foi ter sido precisamente nesse fase de transição que o meu eu obcecado por limpezas (um indíviduo que nunca tinha tido o prazer de conhecer) fizesse questão de aparecer. Aparentemente, o choque de voltar a trabalhar, chegar a casa cansado, e deparar-me com um cenário apocalíptico de roupa, fraldas e toalhitas, sujas ou não sujas, e outros objectos espalhados por cadeiras, móveis e sofás, provocou em mim um trauma de alguma severidade. Como naqueles filmes toscos dos anos 80 em que alguém batia com a cabeça e mudava de personalidade, fez surgir em mim um obsessivo compulsivo que, sempre que chegava a casa, fazia questão de passar a primeira hora a apontar objectos e coisas fora de sítio.
Este tipo obcecado nem me deixa perceber que o melhor era deixar-me de merdas, e entender que estar sozinho em casa com um bebé um dia inteiro é um actividade esgotante e que o tinha de fazer era aproveitar aqueles momentos para estar em paz e sossego com a sua família. Ainda que fosse no meio da porcaria.
#3 – Pensar que o bebé veio matar todos os sonhos que nunca tive
A crer pelos argumentos de alguns filmes e pela conversa de bêbado de alguns amigos meus, há muitas pessoas que casam com a sensação de não terem aproveitado a vida ao máximo, de terem ainda coisas para viver e experienciar, sonhos e projectos incompatíveis responsabilidades e compromissos duradouros.
Não tive nenhuma dessas sensações quando casei, mas como o cérebro é um crápula que nos ataca sem aviso essas sensações apareceram logo na altura da paternidade. E como aos 33 anos já não tinha idade para poder sonhar com uma carreira de sucesso como desportista, músico ou youtuber juvenil, o meu cérebro decidiu lamentar coisas bizarras, como já não poder viajar como um nómada pelo mundo inteiro, coleccionando experiências de vida e tendo pensamentos profundos.
E este é o mesmo cérebro que, nas vezes em que cheguei a viajar sozinho, se entretinha a passar os dias a encher-me a cabeça de estupidezes a tal ponto que voltava dessas viagens sempre farto de mim. Isto para não referir que discutíamos sempre ao jantar, eu e o meu cérebro, nestas viagens solitárias (hoje em dia, com smartphones, a coisa fica mais fácil).
#4 – Achar que tinha direito a dormir noites inteiras
O acordar durante a noite nunca foi uma questão muito relevante dado o facto do Mexicano a) ser amamentado, b) ter completo e total desprezo pelos padrões naturais de sono,e c) ter completo e total desprezo pelos padrões naturais de sono dos pais. Isto implicava que a mãe tivesse de estar muito mais atenta ao choro nocturno, excepto se fosse claro e necessário que o problema implicasse uma mudança de fralda ou outra coisa que não fossem seios lactantes.
Sabendo disto, a poucos dias de regressar ao trabalho, houve um dia em que eu resolvi escalar um nível de anormalidade a tudo o que já aqui foi exposto, e anunciei solenemente à minha mulher que: “Agora que vou voltar a trabalhar, é apenas justo e natural que fiques tu e somente tu responsável por qualquer actividade que implique sair da cama à noite”. Vejam só a moral de um tipo que passa o ano a dormir uma média de 5 horas por semana para depois querer acordar às 13 horas de um Domingo, se virar para uma mulher que está a passar pelo que é provavelmente um dos meses mais exigente da sua vida, onde depois de uma sessão de tortura de oito horas que culminou com a expulsão de uma espécie da cabaça através da bacia óssea, se vê mergulhada em várias semanas de privação de sono.
Não tenho dúvidas que quando eu disse aquilo a minha mulher o que viu foi um cruzamento entre isto:
#5 – Culpar a minha mulher por se sentir cansada
O facto de ser um idiota não quer dizer que não seja bem-intencionado, mas um idiota bem-intencionado não deixa de ser um idiota.
Perante a imagem de uma mulher sujeita às duras realidades da privação do sono, incapaz de dormir mais do que três (quatro numa boa noite) horas seguidas, e condicionada ao longo do dia por uma roleta russa de sestas que oscilavam entre os 15 minutos e uma hora, achei por bem partilhar – mais do que uma vez – a seguinte pérola de sabedoria: “é natural que te sintas cansada, não estás a aproveitar os momentos em que ele dorme para aproveitares para dormir também!”.
O que, no fundo, também poderia querer dizer: “além de implicar que consegues adormecer sempre que for necessário, tens de abdicar que qualquer momento que possas querer reservar para ti, seja para tomar banho ou fazer o almoço, ou consultar o facebook, e passá-lo a dormir para recuperar o tempo perdido – É LÓGICO!”.
#6 – Comportar-me como um vilão de telefilme de domingo à tarde
Quando estava a falar à Ana nas ideias principais deste post, entre risos (mútuos) e pedidos de desculpa reiterados (meus), ela relembrou-me um episódio de que eu tinha feito todos os possíveis para apagar da memória (não em lembrava mesmo dele), e que é bem capaz de significar o ponto alto destes processos de tumultos mentais. Eu estava no computador a tentar perceber em quantas facturas de atraso é que já ía o Meo, e a Ana pediu-me para segurar o Mexicano com alguma urgência, porque tinha de fazer qualquer coisa, ao que eu respondi que não podia porque estava ocupado.
Perante a insistência dela e aquele tipo de pergunta meio incriminadora de ” podes por favor pegar no teu filho?”, eu terei – alegadamente – exclamado vociferado algo do género: “não, agora não posso porque o meu filho não paga contas!”.
É verdade que nunca me tinha sentido muito preparado para ser pai, mas lembro-me de ter passado os nove meses da gravidez a interiorizar que muita coisa ia mudar, que os primeiros meses iam ser terríveis, dramáticos, repletos de privação de sono e ânimos sensíveis. Mas o que acabei por subestimar foi mesmo o impacto emocional da paternidade. O peso de um amor que começa por tomar uma forma mais instintiva do que pessoal (no meu caso), e o peso de uma responsabilidade brutal que também vem amplificar angústias, medos e fragilidades do ser humano.
Eu também gostava de não pensar tanto nas coisas, mas há alturas em que é mais difícil . Só que depois o miúdo espirra, ri-se ou estende os braços na nossa direcção, e percebemos que há mais uma enorme razão no mundo para que tentemos ser o melhor de nós próprios, e é uma razão que nos enche de coragem, força e calma. E há uma pessoa ao nosso lado que nos percebe, e nos ajuda. Não tenho dúvidas de que passámos (e sobrevivemos) estes dias, que também tiveram muitos bons momentos, mais fortes, mais unidos. Como uma família.
Nos dias a seguir a ter a Amália havia quem, estupidamente, me perguntasse quando é que vinha o próximo e “dois é que é bom”.Não se faz este tipo de comentários a uma pessoa que acabou de expelir um ser e continua gorda como tudo e o ser chora. Horrorizada respondia que nem pensar que nunca mais me iam apanhar noutra, já me tinham enganado uma vez, não me enganavam uma segunda. Hoje tenho a certeza que vou ter mais um e a histeria já me passou.
Leididi,
Isso é tipico de mamã. No meu caso já passou um ano e meio e continuo firmemente convicto que “um chega bem”! 🙂
Pois, lá em casa isso aconteceu mais comigo. Excepto já não estar gordo nessa altura.
Atendendo ao facto de que este post vem de um ser que possui um cromossoma Y é incrível a sua capacidade de instrospeção e reconhecimento de que terá agido mal (ou melhor, o humanamente possível na altura, ainda que mal), sem que tenha sido preciso a sua mulher tê-lo chamado à razão ou, se o fez, sem que tenha achado que essa chamada de atenção seria produto da histeria feminina de uma mulher que acabou de ter um bebé. Bravo! Poucos o fariam…
Digamos que alguns dos pontos resultaram de processos de introspecção, outros de chamadas de atenção (de forma um pouco antipática, se me é permitido), e outros de reflexão conjunta e galhofeira. 🙂
O que observo no meu trabalho é que há uma enorme relação entre a sensação de coisas por viver e o impacto dificil com a parentalidade. E com o compromisso também, casamentos, comprar casa ou até a ideia de uma conta conjunta. O casal pode estar feliz mas enquanto não se dão certos avanços, nem que seja um papel assinado, mantém-se uma clivagem entre o eu solteiro e o eu comprometido e engana-se a ambivalência. Bastante conveniente, e been there 🙂
Adorei a honestidade. Por aqui também houve dias em que a carga de trabalhos era empurrada para um e para outro mas o que gerou discussões sucessivas foi mesmo a panela de esterilizar os biberãos. Ele ficou encarregue dessa parte mas adormecia com aquilo ao lume e eu super cansada com a privação de sono das primeiras semanas (tivemos sorte, foram só semanas) não queria acreditar que ainda tiha de supervisionar panelas 🙂 E por fim, volta e não volta ele pergunta-me quando é que mandamos vir a menina… eu já lhe disse que se ele engravidar por mim, é quando ele quiser.
Pois, eu evito ao máximo fazer essas perguntas, mas talvez não tenha grande escapatória. 🙂
A meus braços, Mãe sabichona. É também a minha resposta quanto às insinuações sobre quanto seria giro ir a um segundo round.
Um bem haja `a paci^encia da esposa, como diriam os antigos.
😀 O texto está genial!!!
De qualquer forma, como mãe também reconheço que nesses primeiros tempos não são só os pais que têm atitudes mais freaks!… 😛
O que vale, o que importa, o que conforta é sabermos que para os momentos mais estranhos de um e para os momentos mais estranhos do outro, existe o que está ao nosso lado que nos ajuda a “equilibrar”…
A verdade é que paternidade/maternidade provoca mudanças brutais na nossa vida, não se pode esperar/exigir o impossível!…
O Eduardo Sá uma vez disse qualquer coisa do género: “Como pai ou como mãe se não fizeres um disparate de 8 em 8 horas, não te preocupes… um dia ainda hás-de ser bom pai/mãe” 🙂
Olha, estava aqui a ler-te e a pensar que adorava saber que o pai do meu filho também tinha a capacidade de reflectir sobres estas coisas. Acho este post mai` lindo do que uma declaração de amor. Se fosse uma teenager, dizia: “Curto-te bué. Tipo, percebes?”
’tá-se. 😎
eu até gosto do Gonçalo Cadilhe… 😀 confesso!
A maternidade/paternidade muda-nos, é cliché, mas é verdade… É inevitável! E faz-nos ter atitudes que juraríamos a pés juntos nunca vir a ter. Já me caiu tanto cuspinho em cima, god!!!
Como mãe, partilho contigo os pontos 2 e 4 e já fui um bocadinho antipática com o pai lá de casa por causa de um ponto 5 um bocadinho acentuado (acho que é memso o único de que ele padece!)
Vou usar isto como benchmark para memória futura…num misto de cautela e temor.