O dia em que entalei o dedo do meu filho (e o meu cérebro)

Por norma sou eu que levo o Mexicano à escola de manhã. A Ana começa a trabalhar mais cedo e sai de casa antes de nós. Isto implica uma sucessão de tarefas matinais altamente descoordenadas e de ordem incerta, entre vestir-me, tomar o pequeno almoço, esperar pelo pastel dele matinal (que acontece sempre 5 minutos antes de sairmos de casa, algumas vezes de forma trágica), vestir o meu casaco, vestir o casaco dele, pegá-lo ao colo, esquecer-me do telemóvel na mesa, pô-lo no chão, ir buscar o telemóvel, agarrar no saco dele, certificar-me que tenho tudo nos bolsos, voltar a pegá-lo ao colo, aperceber-me do quão pesado ele está a ficar e ter medo de ter uma cãibra no bicípite, ou entrar em pânico porque não me lembro se guardei a chucha no saco, até sair de casa para entrar no elevador. No entretanto, ele está naquela fase em que vai apontando para todo o lado e fazendo “hã?”, e lá vou explicando: é a porta, é o candeeiro (uma obsessão), é o comando da televisão (uma ainda maior obsessão), etc.

A pirâmide de Maslow aplicada a Bebés.
A pirâmide de Maslow aplicada a Bebés.

Aqui há umas semanas, já a descer no elevador, e no momento em que estamos a parar, ele resolve zar na direcção da porta. É também nesse momento que eu estou a abrir a porta interior do elevador, que é daquelas portas gradeadas de correr, e é aqui que começa a decorrer um daqueles clássicos momentos em câmara lenta.

Não sei se ele estava a perguntar pela porta, a assinalar barulho da paragem do elevador ou a dizer “o caminho é em frente!”, mas o que é certo é que o dedo dele pairou ali uns instante entre os buracos da grade da porta interior enquanto eu estava a correr a porta para podermos sair. É aqui que deixo de ver a ponta do dedo indicador, entalada numa das junções da grade. Já em ligeiro pânico, volto a abrir a porta, e, com o dedo libertado, saímos do elevador, enquanto ele permanece numa expressão profundamente silenciosa, entre a surpresa e o choque. Percebi logo o que aí vinha. E pensei: foda-se.

Claro que o que aí vinha era uma berraria enorme, que é totalmente compreensível, dadas as circunstâncias de ter ficado com o dedo entalado na grade do elevador, depois de alguém, que tem alguma dificuldade em funcionar antes do meio-dia, ter aberto a porta de forma algo descuidada. E é no auge dessa berraria, enquanto olhava para a ponta do dedo dele que latejava numa combinação pouco saudável de tons roxos e vermelhos, além de evidenciar uma sinuosidade não própria de um dedo que se quer em linha recta; que eu, horrorizado pela ideia de ter magoado o meu filho, e sem noção da gravidade da situação – teria partido alguma coisa? precisaria de ir ao hospital? -, tive uma brilhante ideia.Pensei: “calma, o melhor a fazer é voltar ao elevador, entalar o meu dedo na porta, ver como fica, e logo percebo se devemos ir ao hospital!”

Como se houvesse dúvidas
Como se houvesse dúvidas.

E na sequência deste brilhante exercício de raciocínio, ainda consegui concluir: “que estupidez! nunca vou conseguir reproduzir a mesma força e condições de fecho da porta que ocorreram há poucos instantes, infelizmente este experimento estará condenado ao fracasso!”.

Foi mesmo assim. Talvez não tenha usado a palavra ‘experimento’ neste meu monólogo interior, mas foi mesmo assim que as coisas se passaram na minha cabeça. E isto tudo com uma criança a berrar ao ouvido. Lá me acalmei, respirei fundo, e fiz a coisa mais inteligente: liguei à Ana, que me disse que não devia ser nada, e para o levar à escola. Claro que não lhe contei a minha brilhante ideia na altura, porque tenho quase a certeza que ela ia insistir para eu experimentar entalar o meu dedo e ver o que acontecia -, não seria é pelas mesmas razões.

 

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16 Comments

  1. lágrimas, lágrimas de rir! E, no fundo, até acho mal estar-me a rir dum episódio que causou traumatismo comprovado a uma criança… mas estou-me a rir na mesma!

  2. Já te fazias um homenzinho, não?! Do que vir para aqui contar algo que somente revela a incompetência que tens no papel de pai.

    • Está óptimo, supostamente os miúdos são muito mais borrachosos que nós, precisamente para aguentar estas coisas. E também já foi há umas semanas, mas tive de esperar que (me) passasse o stress pós-traumático. = )

  3. Recordo com algum constrangimento o dia em que lancei um pano / fralda pela sala para a ver aterrar na cabeça de uma criança de dois anos e picos. Nada de especial para quem jogou basket durante uma vida, pensei eu. Mesmo com a dita criança em movimento.

    O que eu não estava à espera é que, mesmo com os olhos tapados pelo pano do qual nunca – ainda hoje – se separa, a criatura continuasse a sua marcha acelerada.

    Aqui começou o meu momento em câmara lenta: primeiro, ri-me. Ela tinha achado piada à ideia de correr de olhos tapados. Depois, o pânico. A sala tinha um fim à vista. À minha, não da criança.

    Ainda me estiquei para a agarrar mas claro que não fui capaz de evitar o encontro imediato de terceiro galo.

    Gostava de poder dizer que ela nunca mais me perdoou mas acho que era pequena demais para guardar rancores. E, vá, a memória que terá perdido também pode ter ajudado.

    • Ahaha, e pelo menos também ficaram a saber que não tem percepção extrassensorial (o que é bom, nos dias de hoje).

  4. Epá, que delícia, espero um dia estar à altura dos acontecimentos quando for chamado a entalar descendência minha em elevadores old school.

    Por outro lado, preocupa-me essa gestão de ansiedade essencialmente porque de certa forma sou demasiado laid back em relação a esse tipo de assuntos.
    Por exemplo, o ano passado parti um osso na mão a jogar basket num dia de semana à noite. Como a dor não era insuportável, pensei: epá vou de manhã ao hospital que assim não passo lá a noite.
    De manhã lembrei-me que tinha que finalizar um projecto na agência e pensei “Bem, isto não está a doer assim tanto, vou lá, só tenho que teclar uma ou duas coisas, dá para fazer com uma mão e depois vou.

    Só fui ao hospital à tarde.
    Ninguém me deixa ficar com uma criança depois de saber desta história.

    • Pá, laid back is the way to go.

      Mas o grande problema com a criança – sobretudo se ela ainda não falar – é não conseguires ter noção do problema, e a consequente falta de controlo. Acho que a ansiedade passa um pouco por aqui (mesmo que ela só se manifeste 1 minuto à entrada de um prédio).

      Se um gajo parte um dedo do pé, uma costela, ou assim, sabe que não tem de ir a correr para o hospital; mas depois de ouvires histórias de miúdos que passam semanas em dor porque ninguém percebeu que eles têm um osso fracturado – já questionas tudo. Claro que, quando chegámos à escola ainda lhe dei um ou dois apertões no dedo, e percebi que não tinha sido nada de grave, embora tivesse sentido o olhar dele de indignação. Também sou da filosofia de evitar urgências até ao último minuto.

      Quanto às tuas habilitações, acho que joga a teu favor, porque as pessoas pensam “este gajo pode acontecer-lhe tudo, mas ele aguenta que nem um estóico e vai estar sempre a olhar pelo miúdo”. 🙂

  5. estou nessa mesma fase do “eu aponto e tu dizes o que é”, e o pior é que o meu ” prejuízo” parece que não se cansa de apontar vezes e vezes sem conta

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