As canções infantis “politicamente incorrectas” (ou Podemos esperar que o Observador deixe de escrever ‘clickbait’?)

Um amigo (obrigado, Ricardo) deixou-me o link para um artigo do Observador que pergunta “Devemos censurar as canções infantis politicamente incorretas?“. Dei uma diagonal pelo texto e pareceu-me interessante, reservei um post, mas ainda não tinha percebido a confusão que ali estava.

Antes de falarmos nisso, gostava de vos chamar a atenção para a “Lei Betteridge das Parangonas de Jornal“, que diz que a resposta a qualquer título de jornal que seja uma pergunta é sempre não. Além disso, também diz que este tipo de notícias não deve ser levado a sério.

A última parte confirma-se, é verdade que é cada vez mais difícil levar o Observador a sério. Já em relação à aplicação da Lei de Betteridge, à primeira vista o artigo parece chegar à conclusão de que não – não devemos censurar as canções infantis -, mas lendo o texto com algum cuidado a resposta começa a parecer-se mais com um mas, espera, qual é afinal a pergunta? e passa para este artigo é sobre quê? de que estão a falar estas pessoas? 

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O jornalista começa por falar das tais letras das canções infantis que podem levantar “questões de consciência”, começando com o exemplo do “Atirei o Pau ao Gato”, em que nas “novas versões” o pau trocou de lugar com um peixe, ou outras alternativas anti-violência animal. É o único exemplo relevante do artigo, mesmo que eu nunca tenha pensado nesta canção como um apelo à violência sobre animais, mas sim como uma história sobre um miúdo pateta que tentou magoar um gato e estraga a sesta de uma senhora de idade.

Mas é a partir daqui que o jornalista do Observador, Tiago Tavares, depois de alguém lhe dizer que precisa de outros exemplos para justificar que está a escrever uma notícia séria sobre CENSURA, arregaça as mangas e mostra que está disposto ir ao fundo da questão DEVEMOS CENSURAR AS CANÇÕES INFANTIS POLITICAMENTE INCORRECTAS? DEVEMOS?

Ou mostra que sabe o que é preciso fazer para ter visualizações na Internet.
Ou, melhor, mostra que o Observador anda a estudar as lições sobre ‘clickbait’.

Segue-se um exemplo de grande actualidade: a música do Sebastião Come Tudo (de 1943) e que foi alterada censurada em 1986, pelo José Jorge Letria. Depois vem o caso do Mar Enrola Na Areia, em que um dos versos passa de “É casado com a areia / Bate nela quando quer” para “É casado com a areia / Dá-lhe beijos quando quer”. Portanto da alegoria sobre violência doméstica cantada pela Tonicha, passamos à sensibilidade beijoqueira do Jorge Palma. CENSURA! Assim com maiúsculas, estão a ver o padrão?

Nem imagino onde é que o jornalista terá ido descobrir estes casos flagrantes de CENSURA a canções infantil (devem ter sido dias e dias a ler cancioneiros antigos).

Metodologia da Investigação do Trabalho Jornalístico I
Metodologia da Investigação do Trabalho Jornalístico I

A ronda de análise da CENSURA em canções infantis termina com a transcrição de uns versos aberrantes da lengalenga racista do “Preto da Guiné”, que não se percebe se também foi vítima de CENSURA ou se o jornalista só achou piada lembrar-nos desse momento triste da nossa cultura popular.

Mas a investigação não fica por aqui. O Observador, numa demonstração louvável de coragem, entrou num fórum de discussão para mães para recolher opiniões. Entrar em fóruns de discussão para mães não é para qualquer um. Um dia, num fórum do género, fui parar a uma troca de mensagens onde uma mãe pedia conselhos porque o filho tinha esmegma na pilinha e outra mãe respondeu-lhe que isso não era possível porque os bebés não têm esperma (true story).

Mas tudo valeu a pena porque levou a que alguém escrevesse num Orgão de Comunicação Social a seguinte frase ‘Troca de opiniões no site De Mãe Para Mãe sobre o “Atirei o Pau ao Gato”‘, sem ser a gozar.

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O jornalismo afinal sabe reinventar-se – bem vindos à era do digital.

O jornal reproduz cinco citações do “site De Mãe Para Mãe”, em que as opiniões vão aumentando de complexidade à medida que são enumeradas. A minha favorita é a primeira, claro, que diz que (muitas) crianças ficam violentas “por causa do wrestling que veem na televisão e de filmes e jogos que não são para a idade deles”.

Esqueceu-se do "e a acreditar no Pai Natal".
Esqueceu-se do “e a acreditar no Pai Natal”.

Depois de ouvirmos as opiniões do Fórum de Mãe para Mãe chega a vez dos peritos. Um escritor, uma especialista em literatura infantil e uma psicóloga. Tudo pessoas respeitáveis, com opiniões respeitáveis, mas achei estranho que nenhum deles dê a resposta mais evidente e elementar à pergunta do DEVEMOS CENSURAR AS CANÇÕES INFANTIS POLITICAMENTE INCORRECTAS?

Resposta essa, que é, obviamente, depende. Depende se a letra é racista e compara pessoas com animais, por exemplo. Ou, por exemplo, no caso do “Sebastião que chega a casa e dá pancada na mulher”, DEPENDE se a versão original da canção é UMA MÚSICA DE DANÇA PARA ADULTOS QUE SÓ MAIS TARDE É QUE FOI ADAPTADA PARA CRIANÇAS (vêem, também sei fazer jornalismo de investigação).

Mas não. Ninguém diz que depende. O escritor José Fanha refere que adaptar as letras “conduziria a objetos kitsch, pirosos, completamente idiotas” .

Ao contrário de 'objectos'
Por oposição a outros “objectos” com mais de 50 anos, que além de kitsch, pirosos, e completamente idiotas, também sejam racistas e ofensivos?

A especialista Dora Batalim diz coisas com sentido sobre a função dos contos infantis, mas vê-se claramente que não foi exposta ao calibre da argumentação do resto do artigo (quem em lado nenhum refere contos infantis).

A psicóloga Margarida Cordo não acredita que “as crianças das gerações destas cantigas não amaciadas fossem mais violentas, mais racistas ou mais tristes”, uma afirmação que carrega em si um potencial de discussão tão grande que só de a escrever fiquei com dores de cabeça.

Claro que nenhuma destas opiniões faz um paralelismo convincente entre as canções, o que é politicamente correcto, os exemplos do artigo, e o papel dos contos infantis na educação das crianças. Provavelmente porque nenhuma das pessoas foi sequer confrontada com o conteúdo da “investigação” O próprio artigo não se preocupa sequer em distinguir o que é censurar, adaptar, ou o que pode estar por trás do significado de certas letras. O Observador agarrou num assunto muito interessante – a evolução / transformação da cultura popular infantil e sua ligação com o contexto sociocultural – e produziu uma peça desconexa de angariação de clicks e visualizações, para apelar aos saudosismo do meu tempo é que era bom e agora está tudo perdido.

E a pessoas que ficam com erecções só de olhar para imagens como esta.
Pessoas que ficam com erecções só de olhar para imagens como esta.

O resumo do artigo:

– A favor da CENSURA: eu (mas depende) e uma mãe anónima do site De Mãe Para Mãe.

Contra a CENSURA: três peritos e quatro mães anónimas do site De Mãe Para Mãe

Vencedor: o Observador que produziu um artigo idiota sem fundamento nenhum para ganhar visualizações.

Perdedor: Eu que perdi horas de vida a escrever este post sobre um artigo idiota e ainda dei mais visualizações ao Observador.

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